domingo, 1 de junho de 2008

Rocha Martins - O Governo Provisório da República Portuguesa

Análise ao livro "O Governo Provisório da República Portuguesa" de Rocha Martins - Seminário de História II (Abril de 2008)

Sobre o autor

Francisco José da Rocha Martins (1879-1952) foi um jornalista que se tornou célebre, na sua época, tanto pelo seu notável talento para escrever romances históricos como pela sua capacidade de produção de obra escrita. Ideologicamente flexível ao longo da sua vida, identificou-se, nos últimos anos da monarquia, com o Partido Regenerador Liberal de João Franco, tendo, nos anos seguintes oscilado entre um republicanismo moderado e o monarquismo liberal.

Segundo João Bénard da Costa, “foi o regicídio que o impeliu de vez para a causa monárquica sem abandonar o seu culto pela liberdade”. Ainda segundo este autor, foi uma personalidade que, em 1945, então com sessenta e seis anos, “fazia as delícias da oposição, como antes fizera a de tantas outras oposições”.

Nos últimos anos da sua vida, tornou-se um destacado oposicionista do salazarismo, tendo-se celebrizado os artigos que assinava no jornal “A República”. Quem recorda a sua participação na vida política portuguesa da primeira metade do século XX, cita imediatamente a frase que anunciava as suas intervenções: “fala o Rocha, o Salazar está à brocha”.

Na obra analisada neste trabalho. o autor apresenta-se, antes de dar início ao primeiro capítulo, como alguém “liberal, adversário, confesso e firme, livre de jacobinismos vermelhos e brancos”, salientando que, apesar de ter conhecido muitas das personagens cujas actividades retrata, “por vezes com cumplicidade”, não deixou de “os colocar no seu devido quadro, tratando-as como as analisou”.

1. Introdução

É manifesta a impossibilidade de, neste trabalho, abordar todos os acontecimentos narrados por Rocha Martins, na obra “O Governo Provisório da República Portuguesa”. Consequentemente, também uma análise da perspectiva do autor, em relação a cada um deles, se tornaria uma tarefa muito mais exigente do que as parcas linhas deste texto permitem. Optámos então por, da forma mais sintética possível, analisar alguns aspectos particulares, que achámos de primordial relevância para a compreensão do panorama apresentado sobre este período da história de Portugal.

A forma como o autor hierarquiza, descreve e comenta os acontecimentos e o seu envolvimento com os protagonistas, revela-se essencial para a compreensão do seu ponto de vista. Como tal, procuraremos nestas linhas fazer a aproximação possível às posições manifestadas, implícita ou explicitamente, pelo autor, no seu trabalho de memórias políticas sobre o momento analisado.

Desta análise evidenciou-se, segundo a nossa interpretação, o facto de o autor, apesar de não adoptar uma postura de total distanciamento, em relação ao regime recentemente implementado, formular ao longo da obra uma visão altamente crítica, como veremos mais à frente, em relação a algumas traves-mestras das políticas implementadas pelos promotores da revolução republicana do início do século XX.

Assim, de acordo com a perspectiva apresentada, escolhemos alguns aspectos que, além da sua importância para a compreensão da totalidade da obra, demonstram também as posições pessoais do autor, bem como a forma como as suas convicções intervieram no critério que utilizou para seleccionar estes acontecimentos e não outros, cuja importância pode ser considerada homóloga.

Os aspectos abordados são, consideramos, uma forma eloquente de ilustrar as convicções políticas e sociais do autor, bem como a forma como estas interferiram nos mecanismos de selecção das memórias que compilou na referida obra. O critério que determinou a escolha de uns aspectos particulares, em detrimento de outros, revela, por um lado a impossibilidade de os abordar a todos, dada a extensão e complexidade da obra, mas também o modo como estes se impuseram à análise, pela sua pertinência.



2. O Estado e a Igreja

Após uma breve descrição das movimentações, actores e cenários dos acontecimentos de 5 de Outubro de 1910, Rocha Martins centra os dois primeiros capítulos na descrição das perseguições que a República exerceu sobre os padres, de um modo geral e sobre as ordens religiosas, em particular. É incontornável, à percepção do leitor, que as descreve com a atitude de afastamento própria de quem não pactuou com tais acções.

Recorrentemente, o autor evidencia o seu desacordo, em relação à forma e aos métodos utilizados pelos protagonistas do movimento que depôs a monarquia. Relativamente ao aspecto abordado neste ponto, são imensas as passagens onde podemos identificar o repúdio do autor, em relação aos métodos do processo de secularização do Estado. Metaforizando, compara os religiosos, nos seus conventos, mosteiros e conventos, a “abelhas de várias colmeias atacadas” (p.26) pelas multidões, aderentes à causa republicana, lideradas pelos golpistas.

O realismo, de que o autor reveste muitas das suas descrições, parece indiciar que presenciou os relatados acontecimentos. Atentemos na seguinte descrição, por tão eloquente, que o autor fornece das salas do Colégio Jesuíta de Campolide, após a detenção dos religiosos pelos revolucionários: “As salas do estabelecimento já tinham sido assaltadas, reinava por todo o lado a desordem, a confusão, a porcaria. Abundavam os destroços da cozinha, garrafas vazias, vinho entornado, depois de bacanais e dejectos. As imagens quebradas (…) davam à cena o aspecto horrível da passagem de uma horda barbara que ria à vista dos padres” (p.30-31).

Apenas no capítulo V é registada, pelo autor, uma ligeira inversão da tendência persecutória, que extravasava das instâncias políticas para as ruas. “O Governo Provisório parecia reflectir na questão religiosa” (p.140), tendo publicado uma circular, distribuída aos Governadores civis, que Rocha Martins considera uma desautorização do Ministro da Justiça, Afonso Costa, pelo Ministro do Interior, António José de Almeida:

O Governo da República respeita a religião de cada cidadão como mero acto de consciência, contra a qual ninguém pode atentar e só procede contra o clericalismo e a reacção por serem contrários à liberdade humana, à paz e à ordem social” (p. 140). Esta circular, na qual o autor identifica o “verdadeiro espírito de tolerância e liberdade” que considerava característico de António José de Almeida, tinha por objectivo apaziguar a cólera que os populares descarregavam nos religiosos, instigados pelos republicanos mais jacobinos, que prometiam acabar com todas as práticas religiosas.

No dia 8 de Outubro, as autoridades repuseram a legislação pombalina de 1759 e 1767, que visava a expulsão dos jesuítas, bem como a de 1834 que previa a extinção das casas e ordens religiosas. O autor descreve o encontro de Afonso Costa com os religiosos detidos em Caxias, a 13 de Outubro. Lamenta a supressão do ensino da doutrina cristã nas escolas primárias e a sua substituição pela educação cívica. Uma nova crítica é feita ao Decreto sobre as associações religiosas, que restringiu aos seus membros o direito a praticar o ensino ou a usar hábitos religiosos em público.

A opinião do autor em relação a estas mudanças legislativas é evidente. Segundo afirma, “a lei só servia para desnacionalizar o clero, ligando-o à obediência da Cúria. Perdia-se o direito de nomeação dos bispos; escapava-se das mãos do poder a grande arma de intimidação e domínio, garantia, ao mesmo tempo, da paz com os escrúpulos católicos, que não intitulariam perseguição o que seria defesa quando Roma fizesse exigências incompatíveis com o sentimento do Estado republicano (p. 150).

A separação entre o Estado e a Igreja é vista por Rocha Martins como um erro do Ministro da Justiça, que não entendeu, segundo refere o autor, “o irremediável mal que ia praticar ao fazer dos prelados fâmulos de Roma e levando o resto do clero à obediência desnacionalizadora”, salientando que tal Lei empobrecia o poder do Estado, porque se “deixava escapar uma força enorme, a qual, vigiada e dirigida, podia servir o regime” (p.123).

O autor dedica o capítulo XIII à Lei da Separação e aos seus efeitos. Dos acontecimentos descritos, salientamos a visita de Afonso Costa à cidade de Braga, onde se vivia um ambiente tenso quando o Ministro da Justiça foi “fazer propaganda à sua Lei”. Segundo afirma, no dito capítulo, “se deixassem aos cidadãos o direito, bem democrático, de se manifestarem sem a intervenção da força armada”, que acompanhava o Ministro na visita, “talvez que os partidários da lei separatista não tivessem levado a melhor na cidade dos arcebispos” (p.411).

Sarcasticamente, comenta: “era tudo assim. O Dr. Afonso Costa acreditara que fizera obra política e sucedera o contrário, pois o Estado perdia o seu domínio sobre os eclesiásticos. Fizera do padre liberal, tão simpático, o sacerdote romano” (p.413). Com efeito, Afonso Costa não procurava aplicar uma lei pacífica. Ao declarar o Estado proprietário de todos os bens da Igreja, entregando-os à gestão das Juntas de Paróquia, dirigidas por revolucionários exaltados, não poderia esperar que os religiosos reagissem de modo positivo, do ponto de vista da hierarquia.

Um comentário que Rocha Martins faz às posições de Afonso Costa, em relação ao jacobinismo da Lei, numa crítica ao próprio modo de ser do povo português, é elucidativo dos seus sentimentos sobre a questão: “em Portugal compra-se o jornal para ter uma opinião, que às vezes o periódico não vende por falta dela. Discutir com lógica não é próprio do cérebro preguiçoso dos portugueses”. Com esta afirmação, o autor lamenta que não se tivessem questionado convenientemente as vantagens da Lei, o que permitiu ao Ministro da Justiça que as implementasse, sem antes ter consolidado uma argumentação que fundamentasse convenientemente a sua utilidade.

E comenta nos seguintes moldes as posições radicais dos republicanos, que classifica como sendo plenas de contradições e imprudências irreflectidas: “o Dr. Afonso Costa não justifica a Lei com a clareza devida. (…) Servia-se da história conhecida dos conflitos entre os reis e o papa, os quais só servem para demonstrar que mais vale ter o clero sujeito ao Estado do que liberto dele” (p.413).

Em relação a António José de Almeida, o autor é sempre mais simpático na perspectiva que apresenta. Exemplo disso é a maneira elogiosa como retrata o facto de o revolucionário ter feito questão de casar, numa cerimónia religiosa, por um lado e relata, por outro, o descontentamento provocado pelo acto nas hostes republicanas: “os jacobinos atacavam o Ministro da República que não recusara a religião naquela solenidade da sua vida íntima” (p.234).



3. Republicanos, monárquicos ou adesivos?

A outra linha de raciocínio que seguimos é, sem dúvidas, transversal a toda a obra. Reflecte, de certa forma, as cisões que se manifestaram no seio do partido republicano durante todo o período do Governo Provisório, bem como a perspectiva de Rocha Martins sobre as mesmas. As descrições que, no terceiro capítulo, nos fornece sobre os funerais de Miguel Bombarda e Cândido dos Reis, mostram como, desde os primeiros momentos do novo regime, se assistiria à adesão de monárquicos à República.

Adesivos, eis o termo que se colara nos primeiros dias da república aos que corriam a ligar-se ao novo regime (…) uns solicitados, outros porque souberam pegar-se às novas instituições” (p.101). Numa perspectiva crítica, o autor afirma que a República se entregou, desde a sua fundação, a elementos que, longe de estarem dotados de fervor revolucionário, ou mesmo identificação ideológica, procuravam apenas “colar-se” ao poder político emergente, por questões de promoção pessoal.

Após uma descrição da conjuntura que se vivia, por altura da onda de greves que se registou em Dezembro de 1910, o autor deixa alguns apontamentos acerca das suas opiniões em relação aos que, por conveniências pessoais, aderiam à República: “Era muito singular a atitude dos monárquicos que tinham movido eleitores. Igualavam-nos outros cheios de responsabilidades”, salienta, acrescentando que “os republicanos sinceros eram poucos; os adesivos subverteram-nos com os corrilhos jogadores da última hora, que vendo a balança a pender para a República se tinham lançado no seu prato”

A obra analisada fornece-nos também um importante registo do papel dos jornais no processo de consolidação revolucionária. Sem tentar inventariar exaustivamente as sucessivas referências fornecidas pelo autor sobre estas publicações, dada a extensão da sua narrativa, poderemos referir um aspecto que salta à vista, designadamente pela importância de que se revestiu, pela sua proximidade com as eleições

Este aspecto, que o autor destaca, foi o “empastelamento” dos jornais monárquicos. Quando um periódico era inconveniente, arriscava-se a ser “empastelado”, ou seja, a sua redacção era atacada e as caixas de tipos eram misturadas, o que impedia que continuasse a publicar. O “Correio da Manhã”, diário de forte tendência monárquica, recentemente fundado, tinha alcançado uma elevada circulação, mesmo nos meios republicanos.

Segundo relata o autor, “os republicanos compravam o jornal e alguns, para o poderem ler nos eléctricos, em público” escondiam-no no interior das folhas do “Mundo” ou da “Luta”, jornais que não suscitavam a desconfiança dos republicanos. “Certos monárquicos adquiriam-no às escondidas, outros pagavam ostensivamente a assinatura; as senhoras compravam-no às claras nas tabacarias, encantadas pelo ar subversivo, que tanto atrai as mulheres como os homens leais” (p.268), comenta.

Como o Governo Provisório insistia em manter a liberdade de imprensa, o periódico permitia, segundo é relatado, “que se continuasse a tratar por majestades e altezas os membros da família real expulsa”, o que levou a que alguns grupos de populares pusessem cobro ao que consideravam ser uma injustiça justiça pelas próprias mãos. Os ataques às redacções do “Diário Ilustrado” e do “Correio da Manhã” deram-se no dia 8 de Janeiro, à luz do dia.

Os atacantes, segundo realça o autor, não temeram pelas consequências legais do acto. Rocha Martins, em relação a este aspecto, manifesta mais uma vez o descontentamento característico de quem não pactuou com os acontecimentos, mas com um distanciamento que deixa a entender que não os presenciou.



4. As primeiras eleições da República

Rocha Martins chama a atenção para os boatos que circulavam, antes da realização das eleições, da existência de focos conspirativos monárquicos em Viana do Castelo e em Ponte de Lima. Relata também que Paiva Couceiro tinha já um batalhão de voluntários prontos a intervir, a partir da Galiza. No capítulo XIV, o autor descreve, com alguma ironia, a falta de democracia que caracterizou o período eleitoral: “as primeiras eleições da República eram singulares. Não havia listas de oposição, mas celebravam-se como uma vitória. Não eram eleições, mas nomeações no meio de manifestações ruidosas”.

E continua, no tom de escárnio que se lhe conhece, ao longo de toda a obra, sempre que descreve os protagonistas do momento revolucionário: “eram sufrágios de um partido e não se lhes podia dar este nome porque eleger implica a ideia de escolher e para que se escolha é necessário, como para fazer a guerra, haver pelo menos um adversário. Se a monarquia tivesse atentado semelhante arremedo do sufrágio e o festejasse apoteoticamente, a imprensa republicana teria proclamado o escândalo e apelado para as reivindicações populares” (p.429).

O autor, lamentando a postura de grande parte dos seus antigos correligionários, comenta a forma como “o domínio dos caciques continuava”, lamentando a inactividade dos antigos defensores da monarquia em relação aos excessos dos republicanos, fossem estes “verdadeiros”, “provisórios” ou “adesivos”: “Não havia oposição (…) onde estavam? Onde se tinham metido”? Segundo afirma, estes tinham-se afastado de qualquer contestação com “medo de perder os empregos” (p.430).

Quando está prestes a terminar o livro, o autor refere, com o inconformismo que vinha manifestando ao longo de toda a obra, a forma como a burguesia “capitulava (…), acercando-se dos vencedores”, salientando que esse desligamento “prejudicava a democracia”. Segundo afirma, “os membros do Governo Provisório eram bons republicanos, mas (…) esqueciam o Pensamento e a Fé”. E remata a ideia dizendo: “ser republicano devia ser, para eles, como ser cristão, cumprindo os mandamentos e sacrificando-se pelos princípios (p.450) ”.



5.Conclusões

O radicalismo manifestado pela facção de Afonso Costa veio a mostrar-se decisivo para o conjunto de cisões que se viriam a verificar dentro do partido republicano. António José de Almeida, mais moderado nas suas posições e atitudes, não seria conivente com o secularismo obsessivo que caracterizava os revolucionários mais jacobinos, cujo objectivo declarado era fazer desaparecer a religião do país em duas gerações.

Rocha Martins critica, ao longo de toda a obra, as políticas anticlericais. Porém, apesar de descrever um sentimento generalizado de animosidade, por parte do povo em relação ao clero, nunca aponta as possíveis causas que possam estar na origem de tal desconfiança, convertida em perseguições. Mesmo sendo muitas as passagens em que revela compaixão pelos religiosos, nos momentos das perseguições e detenções.

A perspectiva que apresentamos, sobre a referida obra, apesar de se caracterizar por uma relativa superficialidade, em termos de análise política, procura focar-se na interpretação dos acontecimentos que, por conveniência editorial ou pelas próprias convicções do autor, são enunciados. A contenção que revela no seu discurso pode estar associada à época em que publicou, visto tratar-se de uma obra de 1945.



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